Ao receber a informação de que o Terreno Baldio iria se apresentar na capital paulista, por intermédio de Renato Glaessel (integrante do grupo ProgBrasil), automaticamente iniciou-se um processo de logística para se fazer presente neste evento, já que sairia do Rio de Janeiro em pleno meio de semana rumo a São Paulo (o show estava programado para uma terça-feira). A primeira medida foi a solicitação de um dia de folga no trabalho devido o itinerário rodoviário na ida e resgate de pontos de milhagens para garantir um retorno a tempo de trabalhar no dia seguinte ao espetáculo. Tudo esquematizado e programado, solicitei ao próprio Glaessel que comprasse a minha entrada, pois como o SESC Vila Mariana possui capacidade para somente cem pessoas, era possível que de última hora os ingressos se esgotassem.
Ingresso garantido, passagens compradas, restava apenas a expectativa de mais uma vez presenciar um show dessa que é uma das maiores bandas de rock progressivo brasileira, porém muito menos conhecida e incensada que outros pares dos anos setenta, tais como O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Som Imaginário, Os Mutantes e obviamente Secos e Molhados. Em um bate papo informal com um grande admirador e colecionador de trabalhos progressivos, o amigo niteroiense Julio Scultori, o mesmo se mostrou interessado em também ingressar nessa caravana rumo a Sampa para ver o Terreno interpretando os clássicos do primeiro álbum e outros números. Mais uma vez acionamos Glaessel para adquirir outro ingresso, algo que o mesmo pacientemente garantiu indo ao SESC comprar mais uma entrada para o show.
Ingresso do evento.
Saímos de Niterói no ônibus das 12:00 horas com previsão de chegada às seis e quinze no terminal rodoviário do Tietê, entretanto pegamos uma chuva daquelas na chegada em São Paulo, justificando a alcunha de terra da garoa e por conseguinte um engarrafamento monstro, atrasando a chegada para as sete e meia, foi só o tempo de comprar uma água e partir rumo ao metrô com destino à estação Ana Rosa. Na chegada fizemos um contato com o Glaessel, nos encontramos poucos minutos antes do show e na porta do evento lá estavam os integrantes do Terreno Baldio para um bate papo informal apenas aguardando a hora para iniciar o show. Tentamos tirar fotos, mas a bateria estava descarregada, fomos a uma banca de revista comprar novas baterias e no retorno já entramos com o show na execução da primeira música.
Kurk colocando a alma em "Este é o Lugar".
O grupo abriu de cara com um dos hinos maiores da banda, nada mais, nada menos que 'Este é o Lugar'. Percebia-se de imediato o quanto estavam felizes por se reencontrarem mais uma vez, havia aquele brilho no olhar, aquele cuidado de fazer o melhor para o público que ali estava prestigiando e ainda por cima contando na platéia com admiradores do Rio de Janeiro e Minas Gerais, estes últimos convidados pelo empolgadíssimo Benedito Gomes (amigo do Glaessel e provavelmente um dos maiores entusiastas no Brasil a respeito do magnífico trabalho do Terreno Baldio). Esta música, além de configurar ao lado de 'Grite' na identidade do grupo, também possui em tom figurado uma grande conexão com o contexto histórico pelo qual o país estava atravessando no governo militar, numa análise superficial da letra, identificamos o senso de liberdade que a juventude tanto clamava no período: "Todo mundo passa por perto/Mas ninguém olha, ninguém o vê/Todo mundo quer encontrar um terreno só seu". Não por acaso ao término deste clássico, o genial Lazzarini tomou a palavra e informou que o show era pra gente, afinal de contas não há mais ganho financeiro nestas apresentações, só mesmo o amor de manter a chama da velha e boa música acesa, infelizmente isto é a mais pura verdade. Vale citar os comentários inusitados do mesmo Lazzarini, quando cita que após o rock progressivo surgiu uma nova modalidade de rock, chamada 'rock regressivo', vejo-me mais uma vez obrigado a concordar inteiramente com ele. Nada contra o 'rock regressivo', acho que se deve conceder espaço para todas as formas de música, o que é inaceitável é preterir inteiramente uma manifestação artística legítima como o rock progressivo em função de outras vertentes, algo que a mídia através de pseudo intelectuais incentivou profundamente a partir de 78, visando o apelo comercial da moda punk e seus quatro acordes com músicas de três minutos, perfeitamente apropriadas para vender publicidade em rádios e TVs especializadas em video clipe numa espécie de rebeldia anárquica sem muitos fundamentos estruturais e consistência política.
Lazzarini distribuindo autógrafos
Lazzarini com os admiradores do Rio: Gibran e Júlio
O show seguiu com mais três clássicos absolutos: 'Despertar', "A Volta" e principalmente 'Água Que Corre', deixando o público absolutamente extasiado, alguns então chegavam a se levantar das poltronas para os aplausos em pé, sinal de completo regozijo diante de tão bela apresentação para júbilo da banda. Logo em seguida, Kurk enuncia para o público a estória da entidade denominada Aqueloo, informando que ela sempre surgia durante a madrugada para varrer todos os entulhos acumulados no Terreno Baldio, deixando-o absolutamente limpo para um novo alvorecer. Para surpresa geral, a banda executou a versão original e inédita de 'Aqueloo', com os vocais em português num dos melhores momentos da apresentação, superando inclusive a versão lançada em inglês pela progressive rock. Importante frisar que o novo integrante do grupo na condução do baixo arrebentou, estava hiper harmonizado com todos e não só fazia uma base quebrada e interessante como também se aventurava em alguns movimentos como frontman instrumental da banda, apresentando grande personalidade.
Após 'Aqueloo' Kurk deixa o palco e o Terreno Baldio mostra toda sua virtuose num set instrumental de tirar o fôlego. Nesse ponto salta aos olhos a técnica apuradíssima do guitarrista Mozart Melo. Pra ser franco desde o início do show ele já andava cometendo algumas bruxarias na guitarra. Figura impassível, assim como Hackett fica sentado durante todo o show, num jeito meio estranho de segurar na guitarra, onde a mesma praticamente fica na vertical e da mesma forma que uma diva apresenta seu colar de aljôfares mostrando pérola por pérola, Mozart dedilha a guitarra mostrando nota a nota porque merece figurar entre os maiores guitarristas que este país já teve. Outro grande destaque no set instrumental foi o espetacular solo de violino. O grupo mais uma vez obteve como resultado final aplausos efusivos da platéia.
Mozart Mello concentrado para mais um belo solo
O Terreno Baldio provou que realmente havia se preparado para esse show, pois com o retorno de Kurk ao palco o grupo executou três números do menos popular segundo disco, o ainda inédito em cd (algo de certa forma inexplicável, haja visto a qualidade das músicas apresentadas) 'Além das Lendas Brasileiras', destaque para 'Saci-pererê'. Ao término do show, em altos papos com Lazzarini, foi explicado qual seria a proposta desse segundo trabalho, ou seja, a de homanegear o folclore nacional, trazendo para o rock progressivo algo original e uma conexão com o imaginário cultural brasileiro, porém já se vivia um período de ocaso do rock progressivo e tal disco acabou por redundar num injusto fracasso de vendas e acabou até mesmo por precipitar o término do grupo em estúdio, principalmente porque músicos desta estirpe não estavam dispostos a vender música fácil com o novo advento comercial que se enunciava em fins da década de 70.
Kurk divisando o público
O show já havia completado um pouco mais de uma hora de duração, quando Mozart iniciou junto com Lazzarini os famosos acordes de 'Pássaro Azul', instrumental sinfônico e de muita beleza num mero refrão vocal como pano de fundo para em seguida emendar com o momento mais esperado por todos, a execução da deslumbrante 'Grite'. Aqui não cabe muitas palavras, momento de pura emoção, clássico absoluto do progressivo nacional e que se ao invés de lançada no governo Geisel (início da abertura) fosse produzida no governo Médici (momento de recrudescimento), provavelmente os integrantes teriam que se explicar ao SNI, afinal de contas, como justificar uma letra em que expressa como único lugar de paz e propício para extravasar todas as emoções um local ermo como o Terreno Baldio? Ainda mais em tempos que todos andavam calados, com Chico criando metáforas através de 'Cálice', onde a sociedade observava estarrecida a 'emersão do Monstro da Lagoa'. Enfim, nada de mal aconteceu aos integrantes do genial Terreno Baldio e trinta e cinco anos depois, ainda se pode curtir o deleite de vê-los ao vivo e com muita vibração e energia.
Benedito Gomes ficou tão alucinado que ao término do show procurou o Lazzarini para saber da possibilidade de gravação de um dvd, afinal de contas é inadmissível que um grupo desta envergadura ainda não tenha um registro digno de sua qualidade, também concordo com ele. Todos os integrantes pacientemente receberam o público para autógrafos ao fim do espetáculo e o Lazzarini ainda muito feliz com o calor humano das pessoas, anunciou a presença do grupo no festival Psicodália em janeiro no norte do Paraná. Então é fazer as malas e prestigia-los novamente em janeiro!
O grupo agradecendo o público ao término do show
Benedito tentando convencer Kurk a gravar um dvd
Da esquerda para direita: Gibran, Benedito, Lazzarini e Glaessel.