Amyr com as bailarinas do Lince Negro no dia da apresentação
'Portais de Seth' representa o dvd independente do show do Alpha III Project realizado em 2006 no Teatro Municipal Castro Mendes na cidade de Campinas S.P. O evento filmado por Renato Glaessel apresentou o Alpha III Project com formação de power trio, capitaneado pelo líder e multinstrumentista Amyr Cantusio Jr. - vocais, piano e teclados, Victor Marcellus - bateria e Ricardo Cury - baixo. Mesmo contado com uma formação clássica do rock, o show possibilitou doses generosas de momentos eletrônicos. Esta fusão inusitada dos elementos usuais de grupos como Emerson, Lake And Palmer, Trace e Triumvirat com momentos tipicamente relacionados à música eletrônica de nomes como Tangerine Dream, Vangelis e Klaus Schulze representa uma performance única e sem precedentes no cenário musical do planeta.
Faz-se necessário enfatizar que esta fusão na maior parte do show ocorre de forma distinta e não associada a um mesmo número musical, passando a idéia de duas exibições ao mesmo tempo, mas a originalidade idealizada em mostrar escolas tão distantes em suas concepções musicais é atingida com muita personalidade pelos músicos e rara maestria do mestre Amyr Cantusio. Se pegarmos uma das obras mais emblemáticas de todos os tempos na fusão entre os elementos clássicos do rock e a música eletrônica, o disco 'Cyclone' do Tangerine Dream, ainda assim teríamos um abismo enorme para a proposta musical de 'Portais de Seth', pois 'Cyclone', em que pese ser um trabalho formidável e tecnicamente perfeito, está muito longe de empreender momentos típicos de power trio.
A apresentação do menu e a introdução do dvd possuem efeitos bem simples, todavia honestos com o conceito do show, trazendo uma aura de psicodelia na abertura intricada com Amyr solo nos sintetizadores para o preâmbulo de 'Portais de Seth'. A atmosfera é extremamente tensa, através dos diversos ataques impostos aos teclados com sensações diversas e a surpresa causada pelas dançarinas da tradicional Academia Lince Negro de Campinas, especializada nos mais diversos tipos de danças orientais, notadamente a dança do ventre. A beleza das dançarinas envoltas num véu interligando-as, propicia um elo único, numa performance interessante, através do perfeito sincronismo com os sons oriundos dos teclados, onde a cena do grito se destaca pela tensão provocada na atmosfera do Teatro. Logo em seguida ocorre um enquadramento na figura isolada do tecladista simplesmente debulhando neste número eletrônico que é acima da média. Importante salientar a impressionante concentração com que Amyr toca os teclados, onde praticamente não se dirige à platéia em momento algum, nem mesmo um simples olhar, nada é capaz de desviá-lo diante dos maravilhosos acordes que executa. A qualidade do som está surpreendentemente boa para uma edição totalmente independente, sem falhas quanto ao sincronismo com a imagem. Imagem esta que deixa um pouco a desejar pela questão óbvia da falta de maiores recursos técnicos, uma vez que o evento fora todo filmado num único enquadramento e com uma única câmera, fato que no futuro será visto como registro lendário para a carreira do Alpha III, indubitavelmente um dos maiores projetos em todos os tempos da música progressiva brasileira. Na sequencia o baterista Victor Marcellus se une a Amyr no palco para a execução de uma atraente versão de 'Quadros De Uma Exposição', do compositor russo Mussorgsky. A explosão musical adentra ao Teatro em forma de completa quebradeira, ambos os músicos são muito competentes e possuem total entrosamento, mesmo nas partes mais complexas. Aqui não tem muita conversa, é Trace na veia!!!!!!!!!!!!!
No segundo número musical nesta formação em duo, a intensidade é um pouco abrandada, pela expressão vocal de Amyr numa das suas composições mais clássicas e emocionantes, a sinfônica 'Time To Love'. Impressionante a magia que os seus vocais imprimem na música, combinando adequadamente com o andamento nos teclados. Esta é sem dúvida um monograma do Alpha III, daquelas marcas registradas inconfundíveis na carreira de Amyr Cantusio. Na sequencia, sobe ao palco o baixista Ricardo Cury para completar a formação do grupo, seguido pelas radiantes dançarinas do Lince Negro, que executam uma performance teatral na introdução eletrônica de um dos maiores petardos do show, 'Marte, O Deus da Guerra', homenageando G. Holst. A encenação no palco é obscura, um ritual negro, a utilização da espada remete a seitas medievais e as dançarinas provam que possuem domínio total da arte em se apresentar com estes elementos. Esta etapa do show possui dois pontos que valem destacar:
1. A demonstração clara que é possível fundir três elementos, de forma primorosa, que a princípios são dicotômicos entre si numa mesma faixa sonora: música eletrônica, quebradeira a la power trio e performance teatral;
2. Certa vez assisti a uma apresentação em VHS do grupo polonês S.B.B, em que o tecladista Jozéf Skrzek ficava abaixo do palco, enquanto diversos bailarinos executavam uma performance belíssima sincronizada com a musica, num arranjo típico das grandes peças de ópera ou balé, onde a orquestra fica sob o palco, destacando-se primordialmente os movimentos do balé/ópera em detrimento da música. Aqui o Alpha III vai um pouco mais além, pois ninguém fica em primeiro plano, nem o grupo, nem as bailarinas, uma vez que dividem o mesmo patamar do palco, dessa forma a performance teatral não sobressai em detrimento da música.
Pra completar um belo solo de bateria que finaliza com a entrada dos outros instrumentistas e também da dançarina manuseando a espada, um dos melhores momentos do DVD.
A seguir outro clássico, a space 'Windows', a introdução incidental lembra muito as camadas eletrônicas sintetizadas de Klaus Schulze, combinando adequadamente com os vocais de Amyr, a sensação corresponde exatamente ao descrito na letra, um voo cruzando o universo! Em 'Mozart Requiem' o ângulo da filmagem muda para a retaguarda do tecladista, focalizando o que todos os admiradores do rock curtem assistir, ou seja, o músico agredindo as indefesas teclas, para a extração das mais belas melodias e Amyr vai muito mais além... neste número solo, o músico toca em conjunto teclados e um belo piano de cauda. O movimento ao piano é absolutamente irrepreensível, no nível de um solista das melhores escolas clássicas, a erudição, o virtuosismo, a experimentação e fundamentalmente a criatividade do mestre não possui fronteiras, chegando ao magistral na execução do solo no piano ao mesmo tempo que faz a base nos teclados, com a rara habilidade na escolha exata dos timbres, não comprometendo o arranjo para uma peça tão complexa.
'Under Sun Jam' apresenta novamente a formação em power trio, rasgada de improvisos num swing muito dinâmico e agradável, bem delineado pelos três músicos. O solo de Ricardo Cury atrai pelas tintas melódicas, deixando para Amyr o andamento seguinte numa quebradeira impressionante, principalmente quando emenda no piano e assim o público é brindado por sequencias nos teclados e também nos pianos com solos arrebatadores, além de inúmeros timbres, desde os mais delicados, até os mais dissonantes. As estruturas criadas por Amyr para peças clássicas como'Six Wives Cover' possuem luz própria, carregadas de personalidade, não se resumindo apenas a um retrato fiel e óbvio. Há de se destacar nesta música o fantástico trabalho de Victor Marcellus na batera.
Os dois números finais encerram o show de forma maiúscula, com 'Portais de Seth II' e 'Andromeda + Orion', representando um registro digno da performance do Alpha III em vídeo. Cabe não só aplaudir, como ressaltar a grandeza de tal DVD, pois Amyr pode ser considerado, sem uma gota de exagero, o último símbolo de resistência surgido nos anos setenta a hastear a bandeira do prog rock no Brasil. A sua carreira, desde o mitológico Spectro, passando pelos diversos projetos dos quais fez parte, apresenta uma coerência a toda prova, uma fidelidade com sua proposta, com seu modo de enxergar a música... como algo capaz de possibilitar cultura e lazer, ao contrário das obrigações impostas pela mídia que patrocina artistas sem talento e com pouca expressão artística, ou compra outros com talento para seu bel prazer em prol de resultados imediatos junto ao público, em busca tão somente dos seus bônus financeiros, não dando a menor importância para uma certa inscrição que figura nos vinis brasileiros há pelo menos quarenta anos - 'Disco É Cultura'. O Alpha III sempre justificou este termo com muita criatividade, talento e acima de tudo respeito pela arte de se criar música!