Discoteca básica, fundamental
Existem alguns discos que são difíceis de resenhar, ou porque são clássicos e qualquer coisa que dissermos é "chover no molhado", ou porque eles têm algum significado pessoal muito especial, para o bem ou para o mal. O disco "V" do Spock's Beard se encaixa nessa definição de "especial para o bem" para mim. E se não é um clássico, é porque ainda é um disco recente, visto que foi lançado em 2000.
O Spock's Beard é uma das bandas que deram um novo "gás" pro rock progressivo nos anos 90, mesclando o melhor dos grandes medalhões com a energia e a força da música popular desta década. E fazem isso com extremo bom gosto, criando músicas fáceis de ouvir, "pegajosas", mas ao mesmo tempo muito ricas do ponto de vista musical. No "V", parecem ter conseguido construir um álbum quase perfeito para os amantes do gênero, talvez o melhor disco da banda.
Abre com "At The End Of The Day", uma suite inspiradíssima tanto na harmonia como nas letras. Alterna momentos de extrema sutileza e delicadeza com outros de muita energia. É possível perceber claramente influências sobretudo de Yes nessa música, principalmente "Yours Is No Disgrace". Ao mesmo tempo, o peso dos anos 90 está bastante presente, e os teclados de Ryo Okumoto parecem envolver o ouvinte. Neal Morse, como sempre, canta com enorme feeling, com uma voz suave, mesmo quando arrisca partes mais agressivas. No final da música, uma grande brincadeira do excelente baixista Dave Meros tocando o verso de forma funkeada. Enfim, uma música excelente, com refrão poderoso, versos simples, que tem tudo para agradar gregos e troianos.
A segunda música é "Revelation". Tensa, alterna um verso extremamente lento e sereno com um refrão pesado, forte. Mais um show de Neal Morse e Ryo Okumoto. A escolha de timbres não podia ter sido melhor, e o ritmo arrastado causa uma certa sensação de angústia e tranqüilidade conforme se varia o peso da música.
Em seguida temos "Thoughts (Part 2)", espécie de continuação de "Thoughts" do disco "Beware Of Darkness". Assim como a primeira parte, as múltiplas vozes em contraponto formam um todo complexo e bastante chamativo, agradável. Tudo começa com violão e voz: "I thought, I'd come to you and say all the things I had on my mind I thought, it'd might be really great to show you how I feel inside Then I think... maybe not!"
Em seguida, o tema principal, que vai crescendo. Discretas mudanças de compasso fazem o ouvinte "acordar" de repente, curioso, se perguntando se houve mesmo uma mudança ou se foi apenas uma falsa percepção. Outra música que deve agradar a todos, tanto pelo instrumental extremamente progressivo como pelo todo que é bastante acessível.
"All On a Sunday" dá seqüência ao trabalho. É a balada do álbum, música alegre e bem arranjada. Talvez a mais fraca do disco, por não acrescentar muito à banda. Mas não deixa de ser gostosa de ouvir, principalmente os temas bem trabalhados e a voz sempre interessante (e cheia de efeitos nesse caso) de Neal Morse. Podemos dizer que essa é a música que dá um tom informal pro disco, como vamos dizer mais tarde.
"Goodbye To Yesterday" é outra balada, dessa vez intimista e lenta, bela e sublime. O violão dá o tom da música, muito bem ambientada. A impressão que se passa é de um fim de noite em frente a uma lareira, enquanto se pensa em "dizer adeus para o 'ontem'". O som totalmente vintage dos teclados (talvez seja usado mesmo um mellotron, não sei dizer) com certeza vai agradar os amantes da primeira fase do King Crimson. Dave Meros dá um show no baixo e é possível mesmo sentir um forte calor humano ao ouvir a música. Talvez a melhor comparação possível seja "Think Of Me With Kindness" do Gentle Giant, que no disco "Octopus" também faz uma espécie de contraponto à energia do resto das música. Simples, porém extremamente bonita e agradável.
Para fechar com chave de ouro, uma das mais fantásticas suites do rock progressivo atual, "The Great Nothing". O começo com um coro de vozes (de novo, parece um mellotron) causa um certo espanto, e não poderia ser diferente. Os instrumentos mudam, surge um violão. Depois guitarras, bateria, cello, baixo, teclados. A cada instante aumenta a tensão, que se resolve maravilhosamente bem num tema memorável. O trabalho de bateria de Nick D'Virgilio, bastante contido no restante do disco, aparece aqui e no restante da música com maestria. A letra já começa com "one note timeless", como um prenúncio de que a música em breve se tornaria um clássico. O restante da letra é fantástico, para mim especialmente, por motivos pessoais. Extremamente bem construídas, as partes são em geral ligadas por pequenas passagens de piano, e é interessante notar como o uso de violão é feito com sutileza e funciona com perfeição. É até difícil destacar um instrumento na música, pois a interpretação de todos é isenta de falhas. Não há nenhuma nota "a mais" nem "a menos", tudo está no seu devido lugar. A alternância entre tons maiores e menores torna cada momento interessante, e os vinte e sete minutos parecem passar rapidamente, para terminar com um dos temas iniciais de forma gloriosa.
Falar de Spock's Beard é difícil, e desse disco especialmente. Não parece que estamos ouvindo uma banda distante, mas um grupo de amigos. Há uma impressão muito clara de prazer e felicidade nas músicas, que contagia o ouvinte. É como se conhecêssemos as músicas há muito tempo e não houvesse nenhum ar "profissional" por trás, apenas artístico. Obviamente, isso é mérito desse grupo fantástico de músicos e, especialmente, Neal Morse, principal compositor da banda até sua saída, depois do disco Snow. Disco obrigatório para todo amante da música. |
|