Discoteca básica, fundamental
Parte 1: Contexto histórico
No ano de 1972 Klaus Schulze era um ex-baterista recém-saído dos grupos Tangerine Dream e Ash Ra Tempel, que faziam parte do underground de Berlim. Ex-baterista porque já desde 1969 fazia experimentos com sons tirados de órgãos elétricos, motivo pelo qual saiu do Tangerine Dream - cujo líder, Edgar Froese, na época, estava interessado apenas em fazer rock, e queria que Schulze se limitasse à bateria. Schulze tinha um som específico em mente, e não conseguiu encontrar quem mais o fizesse. Por isso em 1971 deixou também o Ash Ra Tempel, grupo que havia fundado, para deixar de lado a bateria e se dedicar exclusivamente aos experimentos com órgãos elétricos. (fonte: http://www.klaus-schulze.com/interv/in9704.htm)
Parte 2: Equipamentos. Apresentação do disco. Comparações.
Desde o início Schulze mostra aspirações de música clássica, nomeando suas peças da seguinte forma: 1º Movimento: Planície (1. Satz: Ebene); 2º Movimento: Tempestade (Crescimento de Energia / Colapso de Energia) (2. Satz: Gewitter (Energy Rise/Energy Collaps); 3º Movimento: Exílio em Sils Maria (3. Satz: Exil Sils Maria). Sils-Maria é uma localidade na Suíça onde Nietzsche passou os verões entre os anos 1881 e 1888, e escreveu textos importantes; esta seria a primeira de muitas referências literárias nos títulos de Klaus Schulze. (fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Sils_im_Engadin/Segl). O título do disco significa "Fogo-fátuo" (literalmente: "Luz errante").
A sequência das músicas em Irrlicht de fato tem uma lógica e o disco inteiro soa como uma única música. Descrever esta música é tarefa difícil pois tecnicamente é simples, porém as texturas e a forma com que os sons são organizados criam um panorama intensamente dramático, que até aquele momento não havia sido alcançado por qualquer outro artista.
Os artistas minimalistas americanos (La Monte Young, Philip Glass, Steve Reich, Terry Riley) exploravam estruturas longas, tons contínuos, ritmos monótonos, mas sempre com forte teorização acadêmica baseando suas composições. Entre os colegas de Berlim, Tangerine Dream e Ash Ra Tempel estavam apenas ensaiando os primeiros sons cósmicos, ainda com fortes elementos de rock em seus primeiros discos. Outro que também estava seguindo por essa linha, mas que não deu prosseguimento, foi Popol Vuh, que logo abandonou os instrumentos eletrônicos em favor de instrumentos acústicos tradicionais.
A música de Klaus Schulze tinha um pouco de todos estes elementos, e nos primeiros discos é principalmente semelhante aos minimalistas, mas em vez de se valer de teorias acadêmcias, a música dele é eminentemente improvisacional. Logo no primeiro disco solo, Schulze conseguiu concretizar sua visão musical e se destacar como músico de personalidade e características únicas, ficando passos à frente de seus colegas berlinenses.
Como todos os outros artistas de Berlim naquela época, dinheiro não existia, e Irrlicht foi feito apenas com um órgão elétrico defeituoso de segunda mão, modificado, algumas gravações de uma orquestra local, um amplificador prestes a queimar (que não resistiu à gravação do disco) e criatividade.
Parte 3: A música
É impossível ouvir ou descrever Irrlicht sem pensar em coisas cósmicas. É o velho ditado: "só ouvindo".
"Ebene" começa com uma massa sonora atonal e cacofônica formada por gritos elétricos de órgão e da orquestra. Logo a sonoridade se estabiliza em uma única nota musical que vai pulsando lenta e longamente, conforme sons orquestrais alterados com filtros fazem aparições fantasmagóricas. Todos os sons são carregados de distorções e filtros, mas ao mesmo tempo harmônicos.
Conforme o tempo passa, novos sons mais agudos de órgão vão tomando o lugar da orquestra, como que anunciando alguma coisa. O que se segue pode ser descrito como o big-bang da música eletrônica. Na prática, são longos acordes mais ou menos dissonantes de órgão, acompanhados de leves efeitos sonoros ainda soturnos. Este momento, que dura vários minutos, é de uma magnitude sem paralelos.
Os longos acordes dramáticos começam a pulsar num andamento rápido (mais de 200 BPM), intensificando o drama, e os efeitos sonoros que os acopmpanham se tornam mais ásperos. Subitamente, a explosão cósmica se encerra, iniciando o segundo movimento - "Gewitter".
Continuando na analogia cósmica, "Gewitter" pode ser descrito como os primeiros corpos celestes após o big-bang. É um desfile de artefatos sonoros, barulhos de todos os tipos, carregados por tênues linhas de órgão. "Gewitter", em seus 5 minutos, é na verdade o final, ou resultado, de "Ebene", e de fato encerra o lado A do LP original.
O final calmo de "Gewitter" dá lugar a "Exil Sils Maria", um vasto campo sonoro onde tudo é calmo, como na expansão do universo após o big-bang. Os elementos continuam ali: linhas de órgão, efeitos sonoros, fragmentos melódicos e harmônicos frágeis. Ao longo de seus 21 minutos, "Exil Sils Maria" respira, cresce, diminui, mas tudo é mais sereno, o oposto da violência dos primeiros movimentos. Serenamente o álbum termina.
Parte 4: Reedição e faixa bônus.
A reedição de 2006 de Irrlicht, pelo selo InsideOut, traz a faixa "Dungeon" como bônus. Esta faixa complementa bem Irrlicht, trazendo estruturas semelhantes, mas ela já representa um passo à frente, com um arranjo mais bem definido. As camadas sonoras são mais densas e já se ouve o começo de uma definição melódica. Esta peça forma uma boa ponte entre Irrlicht e o álbum seguinte, o extenso álbum duplo Cyborg.
Esta reedição traz também histórias de Schulze e seu empresário sobre a criação do disco, de onde eu trouxe algumas informações para esta resenha. Contém a capa surrealista do artista Urs Amann, que fez as primeiras capas para Schulze, mas também um desenho de capa criado pelo próprio Schulze, que decorou algumas edições do disco, além de outras informações históricas e fotos.
A título de curiosidade, "Exil Sils Maria" é uma gravação que foi invertida. Em alguns momentos é possível perceber a forma de alguns sons, se assemelhando a sons de percussão invertidos. Esta forma invertida é a forma com que a peça foi originalmente publicada, ou seja, foi proposital.
Parte 5: Conclusão
Irrlicht é um dos grandes marcos da música eletrônica, e merece esta categoria. Este álbum iniciou a carreira solo de um dos mestres do gênero, e desde já determinou seu estilo, que seria copiado por todas as gerações seguintes de músicos que usam sintetizadores. E Schulze, por sua vez, raramente repetiria uma obra tão coesa e dramática do início ao fim. Irrlicht é clássico. |
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