Discoteca básica, fundamental
Discoteca básica, fundamental.
Quando esta obra foi lançada no Brasil, não pestanejei, arrematei esse cd duplo como um garimpeiro em busca de ouro, ouro puro! Afinal de contas, se tratava do Premiata Forneria Marconi com sua formação quase clássica(a única ausência sentida foi a de Mauro Pagani) para um longo show no Japão, um espetáculo de gala e inesquecível, em que praticamente todos os clássicos fizeram parte do set list. E não foi só, a edição ainda nos brinda com a participação inusitada do mestre Peter Hammil, envelhecido, mas ainda com a mesma vitalidade vocal dos áureos tempos do Van Der Graaf Generator, grupo que arrebanhou uma legião de admiradores no país da bota, para um número em estúdio com o grupo. E que número! Não temos como iniciar essa resenha de outra forma que não seja abordando a estupenda 'Sea Of Memory', que em meio à sua bela letra saudosista é capaz de prender-nos o fôlego diante dessa viagem musical ao passado em conjunto com reminiscentes belezas naturais daquelas terras onde nos sentimos tão bem, no caso em questão das terras do Hammil e do PFM. Interessante notar que esse encontro de titãs acabou pendendo mais para o lado do músico inglês do que para os italianos, pois logo na introdução sentimos aquela velha melancolia ao piano tão característica do Van Der Graaf Generator, mas é óbvio que a marca do genial PFM está representada no solo de guitarra após Peter Hammil enunciar com toda emoção possível...'here comes the flooding water to wash us to the sea of memory.' Ouvindo esse petardo fica o sonho de como teria sido incrível se esses elementos tivessem se encontrado outrora para a gravação plena de uma obra, com certeza seria um épico, se pensarmos que tantos anos depois, desgastados pelo tempo, foram capazes de criar algo tão intenso.
Em seguida temos outra surpresa com mais uma nova gravação, a mágica 'Bandiera Bianca', um tema mais pop de autoria do Franco Battiato, onde o grupo abre concessão até mesmo ao mestre americano Bob Dylan, contando com vocais de Franz Di Cioccio, 'Like A Rolling Stone' surge ao meio da execução...
Após as duas músicas iniciais que funcionam como prefácio, pousamos em Kawasaki para o show do Premiata Forneria Marconi contando com a seguinte formação: Franz Di Cioccio - vocais e bateria, Patrick Djivas - baixo, Franco Mussida - vocais e guitarras e Flavio Premoli - vocais e teclados, ainda temos a participação de Lucio Fabbri - violino, teclados e guitarra e Piero Monterisi - bateria. A introdução chega de forma apoteótica com uma música do primeiro álbum, a clássica 'La Carrozza Di Hans', provando que o grupo não estava a passeio e não se reuniu apenas por questões burocráticas e comerciais, tanto que em seguida foram para o estúdio gravar novas composições. O fato é que essa introdução já demonstra que o vigor de outrora ainda estava presente, porém até com mais vitalidade, mais consistência, mais segurança, algo que a experiência proporciona. Esta versão é realmente de cair o queijo, daquelas que se deve ouvir bem alto, após a leve introdução sob comando de Premoli, o chão vem abaixo. A similaridade com a versão bucólica contida em 'Storia D'Un Minuto' só chega com os vocais de Mussida, que estão extremamente cativantes.
A segunda música conduzida principalmente pelo Flavio Premoli, a versão inglesa de 'Appena Um Po'', denominada 'River Of Life', fez-me lembrar da apresentação do grupo no Brasil, sem a figura do tecladista original e fica claro como sua ausência faz falta, os timbres do mellotron são uma característica muito particular, que com Premoli ganham em personalidade. De qualquer forma, mesmo sem Premoli, aprecio mais a versão original executada no Brasil, confesso um certo desapontamento com esta 'River Of Life', até porque a original em italiano é imbatível, uma das melhores músicas de toda carreira do Premiata. Outro fato a se destacar foi a ausência da flauta de Mauro Pagani, alguém deveria executá-la já que é característica proeminente da versão em estúdio, aspecto que também aproxima o universo do grupo nessa fase com as características sinfônicas do King Crimson.
O duo inicial de 'Photos Of Ghosts' entre o baixo de Patrick Djivas e o piano de Flavio Premoli é maravilhoso, esta versão do show aporta com uma força incrível, vale destacar a categoria das baquetas de Di Cioccio e o solo de violino do Lucio Fabbri é genial, sobre esta grande figura abordaremos mais a frente, o cara simplesmente foi um show a parte, pena que não se efetivou novamente como membro do grupo após estas apresentações, sendo tratado apenas como convidado especial. Do meio para o final a marca é a linha altamente nervosa e melódica do baixo de Djivas, outra fera e tanto! Sem dúvidas 'Photos Of Ghosts' foi uma das mais aplaudidas...
Ao ouvirmos a versão de 'Out Of The Roundabout' fica perceptível que o grupo superou um íngreme talude marcado pelo tempo para essa reunião. A performance vocal de Franz Di Cioccio é surpreendente, mostrando-se um autêntico substituto natural para a fase Lanzetti, com timbre semelhante, sem falar que no palco assume uma postura de relações públicas oficial da banda, interligando-os ao público com enorme simpatia. O detalhe da combinação de violino e baixo nessa execução é pura magia, dando a deixa para uma jam sensacional entre as cordas de Mussida e o piano de Premoli. A curiosidade fica por conta do término do número, em que um espectador deslumbrado pelo que estava assistindo gritou - 'Luciooooo' e de imediato Di Cioccio respondeu - 'Sim Luciooooo, he's alive!' O PFM, assim como a maioria dos grupos mitológicos dos anos setenta, passou por um período musicalmente pobre nos anos oitenta, justamente quando Fabbri fazia parte da linha de frente do grupo, de qualquer forma se reinventaram na década seguinte, a ponto de executarem músicas recentes sem prejudicar o andamento do show porque as mesmas não destoaram com relação aos clássicos, é o caso específico de 'La Rivoluzione', ao vivo ganhou uma roupagem muito mais vibrante que a versão original.
'Promenade The Puzzle', a versão inglesa de 'Geranio', também recebe força com o violino de Fabbri. É ótimo assistir ao grupo executando com tanta efusão os clássicos das duas marcantes obras-primas da primeira fase da banda, naquela época ainda sem Patrick Djivas. O PFM dos dois primeiros discos é inigualável, naquele mix de King Crimson com todas as características sentimentais dos grupos italianos, é a perfeição em forma de música, rock progressivo num nível super elevado. Impressionante como Premoli cria toda uma atmosfera ao piano, melancólica e bela. Na sequencia temos mais clássicos do primeiro disco, a belíssimas 'Dove... Quando(part 2)' e 'Dove...Quando' num feeling exacerbado de todo o grupo, desde o baixo aos vocais, perpassando por toda instrumentação, outro momento sublime! Quanto às músicas deste primeiro disco sou suspeito, são os momentos que mais aguardo numa apresentação do PFM, pois coloco esse trabalho com um dos cinco melhores álbuns italianos em todos os tempos, o que não é pouco em se tratando de um país onde a quantidade e qualidade das obras é algo que beira o absurdo em termos de rock progressivo. Assim, terminamos o primeiro cd, num evento já memorável, porém não chega a se distanciar dos outros álbuns ao vivo e boots que o grupo havia lançado pouco antes, ou seja, ainda assim apresenta um show convencional do Premiata Forneria Marconi.
As surpresas ficam reservadas para o segundo cd que traz ao público inúmeras improvisações, vários números extensos, solos diversos de todo o grupo, isso recentemente o PFM ainda não tinha lançado oficialmente para sua legião de admiradores mundo afora e o que já era excelente, tornou-se uma obra-prima riquíssima. Pra iniciar temos uma mini versão de 'Il Banchetto' preparando o público para o que vinha a seguir. 'Dolcissima Maria', canção em ritmo pastoral do grupo, oriunda do álbum 'L'Isola Di Niente é executada de forma muito emotiva, com Patrick Djivas assumindo as vezes de flautista para os bons vocais de Di Cioccio. Posso dizer que completa uma lacuna para o público brasileiro, já que no show que o grupo fez no país teve que interrompê-la no meio por conta de problemas técnicos em que Fabbri e Djivas não disfarçaram o mau-humor devido às constantes falhas nos equipamentos.
Em 'Maestro Della Voce', Di Cioccio assume de vez os vocais, deixando a bateria a cargo de Piero Monterisi, enfetiçando o público com grande entusiasmo. Os teclados e guitarras estão um verdadeiro aço, difícil ficar parado diante de tamanha energia, onde se percebe ao fundo os gritos alucinados do público japonês, afinal de contas não custa nada pedir somente mais uma música ao maestro da noite. Daí pra frente a sonzeira toma conta com diversos improvisos em 'Si Può Fare', 'Mr 9 Till 5' e 'Scary Light'.
Em seguida temos as versões irisadas das Tokyos jams, ao violino, guitarra e teclados. Na apresentação de Mussida, maravilhosa por sinal, ele abre espaço para um breve, brevíssima homenagem ao Genesis e Yes, mas deixo ao cargo de leitor descobrir quais foram as músicas que serviram como homenagem em meio ao seu solo extasiante, através de notas singelas. É fato que Mauro Pagani está ausente no show, uma perda e tanto, pois na minha visão sempre fora a figura mais inventiva e versátil do grupo, assim sendo, seu substituto não poderia ser qualquer um, tinha que ser à sua altura. Neste contexto, sua substituição por Lucio Fabbri foi extremamente acertada, pois além de já ter sido membro efetivo do grupo nos anos oitenta, demonstrou técnica exacerbada no violino e teclados sempre que necessário. Os números de violino neste segundo cd falam por si só, monstruosos!
Agora muita atenção, pois nada mais que a maior de todas é executada com muito esmero pelo Premiata Forneria Marconi, refiro-me a 'Impressioni Di Settembre'. Já na introdução fica complicado segurar a emoção, não há muito que escrever, feliz daqueles que possuem tal obra e podem ouvi-la sempre que possível. É algo realmente de glorificar a alma! O show se encerra com a música que a banda mais gosta de executar ao vivo, 'La Luna Nuova' e o solo de guitarra mais fantástico que Mussida criou...
O mais importante neste trabalho ao vivo do PFM é que a atmosfera, climas e profundidade musical dos temas ainda continuam vivos no palco, apesar do tempo. Nesta reunião as versões não ficaram pops, nem descaracterizadas, valendo cada minuto de audição. |
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