Discoteca básica, fundamental
Um dos grandes representantes do gênero Neo-Progressivo, o Marillion
(inicialmente batizado como Silmarillion, nome inspirado em uma obra
de J.R.R.Tolkien) foi formado no final dos anos 70, só vindo porém a
lançar seu primeiro registro fonográfico em 1982 (o mini-álbum
Market Square Heroes), iniciando uma carreira de muito sucesso e que
é comumente separada em duas fases bastante distintas: a primeira de
Market Square Heroes a Clutching at Straws (1987), com Fish nos
vocais, fortemente influenciada por Genesis (fase Gabriel), e a
segunda do álbum Season's End (1989) até os dias de hoje, com o
vocalista Steve Hogarth, caracterizada por uma levada mais pop rock
(embora com magníficos trabalhos nesta segunda fase também).
Misplaced Childhood, terceiro trabalho de estúdio da banda, foi
lançado em 1985, com a seguinte formação: Fish (vocais), Steve
Rothery (guitarra), Mark Kelly (teclados), Pete Trewavas (baixo) e
Ian Mosley (bateria). Trata-se de um disco conceitual, de certa
forma inspirado num drama pessoal vivido pelo próprio Fish na época,
mergulhado que estava em problemas com o álcool e em profunda
depressão por conta de um relacionamento amoroso em declínio. Assim,
partindo de uma temática figurativa sobre a perda da inocência, ou
infância perdida (misplaced childhood), Fish e banda compuseram este
trabalho magnífico, evocando temas como solidão e isolamento
("Pseudo Silk Kimono"), sofrimento pela perda do primeiro amor –
aquele que achamos que vai durar para sempre ("Kayleigh") e a
necessidade do indivíduo de renascer, de reconstruir, de redescobrir-
se a si mesmo diante de uma grande perda.
As faixas neste álbum são interligadas, constituindo duas grandes
partes ou suítes: a primeira formada pelas faixas de 1 a 5 e a
segunda pelas faixas de 6 a 10. A seqüência inicial com as
faixas "Pseudo Silk Kimono" (1), "Kayleigh" (2) e "Lavender" (3)
forma um dos trechos musicais mais lindos que eu já tive a grata
oportunidade de ouvir (seja dentro do gênero rock progressivo ou
fora dele), com performances arrebatadoras de teclados e seção
rítmica, solos inspiradíssimas de guitarra do Rothery, além de uma
participação vocal igualmente inspirada do Fish (a faixa 2 dessa
seqüência, "Kayleigh", viria a transformar-se no maior hit da
banda). "Bitter Suite" (faixa 4), dividida em três partes, tem uma
atmosfera bastante sombria e melancólica, com interessantes
reminiscências de Pink Floyd e Genesis ao longo de seu
desenvolvimento, enquanto que "Heart of Lothian" (faixa 5), dividida
em duas partes, apresenta uma sonoridade bem mais enérgica, com
ótima presença de guitarra.
A segunda metade do disco abre com "Waterhole" (faixa 6), com sua
pegada bastante frenética e roqueira, progredindo para a faixa
seguinte, "Lords of the Backstage", ainda com uma boa dose roqueira
também, o que viria a dissipar-se na belíssima e melancólica "Blind
Curve" (faixa 8), repleta de riffs inspirados de guitarra ao longo
de seus cinco movimentos, o mesmo acontecendo na faixa subseqüente a
esta, "Childhood's End?", onde o Rothery brilha uma vez mais. "White
Feather", faixa de encerramento, também apresenta uma levada mais
roqueira, constituindo liricamente uma leve incursão deste trabalho
em temas de cunho político-social também.
Misplaced Childhood representa um momento mágico na história do
Marillion, de perfeita sinergia entre todos os músicos da banda:
Steve Rothery, um dos melhores guitarristas da nova geração
progressiva pós-anos 70, inspirado estilisticamente em alguns dos
mais seminais guitarristas do prog (notadamente David Gilmour e
Steve Hackett), mas criando a partir dessas influências sua
assinatura sônica própria, bastante distinta e peculiar (tornando-se
ele próprio uma referência para muitos outros guitarristas também);
Mark Kelly, tecladista de uma sensibilidade melódica notável,
lembrando o também seminal Tony Banks (Genesis); Pete Trewavas
(baixo) e Ian Mosley (bateria), em perfeita interação com o restante
da banda; e Fish (pseudônimo artístico para Derek Dick, seu nome
verdadeiro), no auge de sua capacidade criativa e de interpretação.
Este álbum constitui, em suma, um dos trabalhos mais elaborados de
todo o cânon progressivo, uma obra-prima irretocável, absolutamente
essencial em qualquer coleção prog que se preze. Impossível não se
emocionar profundamente com a singela beleza e profunda melancolia
de faixas como "Pseudo Silk Kimono", "Kayleigh", "Lavender", "Bitter
Suite", "Blind Curve" e "Childhood's End?" (minhas prediletas do
disco). |
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