Discoteca básica, fundamental
Depois de haver brindado seus fãs, ao longo dos férteis e inesquecíveis anos 70, com verdadeiros clássicos do rock progressivo como Mirage, The Snow Goose e Moonmadness, o Camel passou por uma fase de irregular produção fonográfica durante os anos 80 (Nude, em 1981, The Single Factor, em 1982, e Stationary Traveller, em 1984) para retornar à carga, durante os anos 90, com gravadora própria (a Camel Productions) e três magníficos trabalhos que mostraram inequivocamente ao mundo que o magnífico guitarrista Andrew Latimer, a esta altura único membro remanescente da formação original da banda e dono absoluto do nome Camel, estava ainda no auge de sua capacidade em compor pérolas progressivas absolutamente memoráveis: Dust and Dreams, em 1991, Harbour of Tears, em 1996, e Rajaz, em 1999 (além de haver entrado na década seguinte com um outro trabalho também de excelente nível: A Nod and a Wink, de 2002).
Harbour of Tears, a exemplo de diversos outros trabalhos do Camel, também é um disco conceitual, contando a saga de imigrantes irlandeses que partiram para a América na virada do século XIX para o século XX, em busca de melhores condições de vida. O título do disco se refere a um porto localizado na costa da Irlanda, Cóbh Harbour, de onde partiam os navios com essa gente. Era o local das despedidas, o "porto das lágrimas", a última visão que aquelas pessoas tinham de sua terra natal, despedindo-se dela e de seus entes queridos ao som das ondas do mar. Latimer decidiu compor um disco em cima deste tema após a morte de seu pai, em 1993, quando procurou pesquisar as origens de sua família na Irlanda e descobriu que seu avô também fora um imigrante.
O disco se inicia com uma bonita canção tradicional gaélica, "Irish Air", cantada a capella por Mae McKenna, cujos versos estabelecem a tônica extremamente melancólica deste trabalho: "In this quiet place I stand alone / from my homeland far away / And my empty heart cannot recall / the forgotten dreams that brought me joy. / Had I ways to shed the wasted years / I would travel to my kin / and with strength and faith in God above / there in Ireland I would gladly die". A partir daí o disco é todo pura emoção, dentro daquela sonoridade que constitui a marca registrada do Camel, ou seja, de melodias belíssimas e arrebatadoras, longas passagens instrumentais e letras de intensa carga emocional. "Irish Air (Instrumental reprise)", segunda faixa do álbum, começa com um suave solo de flauta seguido por um belíssimo solo de guitarra, daqueles que só o Latimer é capaz de fazer. "Harbour of Tears" (faixa 3) também é muito bonita e melancólica, com solos igualmente inspiradíssimos e letra de um significado bastante profundo também: "I am one of seven brothers / Five of us must leave and start again / In this land of Saints and Martyrs / Tears of sadness hide within the rain / So fare thee well, Remember me... / Sail from the Harbour of Tears". A breve e instrumental "Under the Moon" (faixa 6), a mais alegre e ritmada "Watching the Bobbins" (faixa 7), bem como a seqüência "Running from Paradise" (10), "End of the Day" (11) e "Coming of Age" (12), também são todas belíssimas, com sofisticados arranjos sinfônicos, deliciosas reminiscências à música irlandesa e os melancólicos solos de flauta e guitarra do Latimer. Mas é na última faixa do disco, "The Hour Candle (A song for my Father)", que lágrimas parecem realmente fluir de cada toque do Latimer nas cordas de sua guitarra. Que música linda esta, que nos remete imediatamente a outros solos absolutamente memoráveis do guitarrista ao longo de sua brilhante carreira, como em "Lady Fantasy" (do disco Mirage), como em "The Snow Goose" e "La Princesse Perdue" (The Snow Goose), como em "Air Born" (Moonmadness), em "Ice" (I Can See Your House from Here) e em "Stationary Traveller" (Stationary Traveller). O disco termina com os mesmos versos de "Irish Air" da faixa inicial, cantados a capella por Mae McKenna, tendo ao fundo o som de ondas do mar.
Harbour of Tears é provavelmente o disco mais emotivo do Camel. Eu acho impossível alguém não se emocionar profundamente com a singela beleza deste trabalho, com os climas criados, com os melancólicos solos de guitarra de Latimer em faixas como "Harbour of Tears", "Under the Moon" e "The Hour Candle (A Song for My Father)", dentre muitas outras. É um disco pra se ouvir repetidas vezes, sem nada mais com que se preocupar além da imersão total na música altamente melancólica e apaixonante nele contida.
O único ponto de certa forma negativo que eu apontaria em Harbour of Tears é o fato de que, ao final, após a repetição do poema "Irish Air", o disco prossegue, sem música, por mais 15 minutos, apenas com sons de ondas do mar. Até reconheço que tem tudo a ver com o contexto, mas tem que estar realmente muito no clima para escutar o disco completo com esses longos quinze minutos sem música nenhuma. Apesar desse detalhe, contudo, eu particularmente considero este álbum um dos melhores da discografia do Camel e, sem dúvida alguma, trata-se de um disco que faz jus à melhor tradição conceitual do rock progressivo. |
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