Bom, mas com ressalvas
Poucas carreiras são tão polêmicas quanto a do Neal Morse. Afinal, ele deixou uma das principais bandas do rock progressivo, da qual era o principal compositor, e resolveu partir para uma carreira solo orientada à sua vocação religiosa.
Do meu ponto de vista, a fórmula do Spock's Beard já dava sinais de esgotamento no último disco com o Neal Morse, embora o resultado final de "Snow" ainda seja na minha opinião muito bom. Em sua carreira solo, novos elementos foram adicionados, mas que também mostraram sinais de esgotamento, uma vez que as estruturas de composições se mantiveram praticamente as mesmas do que nos tempos em que estava com sua banda de origem.
Por isso, foi com algum receio que ouvi seu quinto disco, "?". Neste álbum, o Morse optou por convidar vários músicos renomados do progressivo que gravaram participações especiais em algumas músicas, além de contar com o também renomado Mike Portnoy na bateria e com o Randy George no baixo. Além disso, ele investiu em um conceito que conta a história do Tabernáculo, deixando de lado experiências pessoais. Com tudo isso, o resultado final me surpreendeu, e considero este disco o melhor de sua carreira solo até o momento (incluindo seu último disco, "Sola Scriptura").
Entretanto, o disco tem seus pontos fracos, e é por eles que começo. O primeiro e mais evidente: as melodias vocais deste disco não têm lá grande carisma e se tornaram quase comuns se comparadas às suas composições anteriores. Sempre considerei as ótimas melodias vocais do Morse como uma de suas características mais marcantes (e aqui não levo em consideração o teor religioso das letras), e esta ausência faz com que não exista no disco uma música absolutamente brilhante.
Segundo: apesar de trazer novidades em alguns trechos, em outros o Neal Morse se repete descaradamente. "Sweet Elation" parece ter sido composta para o "Testimony", por exemplo, até a progressão é idêntica.
Terceiro: apesar da menor duração do disco, ainda assim há alguma enrolação, e o disco poderia ser um pouco mais curto. Depois de uma paulada na moringa, na metade do disco tem lugar uma seqüência mais calma, com progressão lenta e constante até o clímax ao final de "Deliverance". O disco poderia acabar aí, mas o Neal Morse tinha que gravar mais uma balada sem-vergonha chamada "In His Presence". Felizmente, ela é salva por um bonito solo dobrado de guitarra, que progride bem até o verdadeiro final. Dá a impressão que o Morse tinha dois finais na obra e ficou na dúvida sobre qual deveria ser utilizado, então mandou essa marretada...
Seguem agora os pontos positivos que identifiquei, e que por sorte superam os negativos.
Primeiro, como escrevi na introdução, eu estava desanimado com a carreira solo do Morse. "Testimony" tem alguns trechos instrumentais brilhantes que primam pelo rock sinfônico com orquestrações muito bem arranjadas, mas é longo demais e tem algumas coisas ruins de doer (algumas baladas sem-vergonha, por exemplo). "One" é um disco mais curto, mas nem por isso sem enrolação. Além disso, o Morse adicionou em determinados momentos um som pesado demais pro meu gosto, sem deixar o rock sinfônico de lado mas com orquestrações inferiores às de "Testimony". O resultado na opinião deste resenhista é um disco apenas razoável.
Isso não acontece tanto em "?". O disco é ainda mais curto (56:29), mas é composto basicamente por uma música dividida em 12 partes com trechos que são revisitados. O Morse é mestre nesse truque, que também está presente em seus discos anteriores, e por isso já está meio manjado. Por sorte, à exceção do trecho que comentei acima, desta vez as partes funcionam bem no conjunto da obra, e muitas delas também funcionam bem isoladamente. Por isso, me parece que a estrutura de composição deste disco, apesar de não apresentar grandes novidades, representa uma melhora.
Segundo, eu gostei do estilo musical apresentado. Este é um disco de rock progressivo sem tanta ênfase em orquestrações sinfônicas, dando lugar a algumas faixas de puro rock. Além disso, não há uma grande variação de estilos musicais como em "Testimony". Há um trecho mais puxado pro samba-jazz (aliás, o Portnoy parece não ter o swing necessário para tanto) em "12", uma seqüência mais lenta a partir da segunda metade do disco, mas de resto é rock daqueles que conferem maior coesão à obra e que deixam o ouvinte satisfeito.
Alguns trechos são mais pesados, mas nem tanto quanto em "One", e por isso me agradaram mais. Além disso, o Neal Morse adicionou trechos mais marcados e swingados e usa metais de forma mais comedida e não tão estridente quanto naquele disco. Tudo isso faz com que "?" tenha por vezes uma energia que lembra a do "Kindness of Strangers", que apresentava um som moderno por vezes swingado.
Terceiro, a seleção de músicos faz diferença. Todos eles contribuem muito bem, e o disco é muito bem executado. Com isso não quero dizer que os outros discos não tenham sido bem executados, mas cada ótimo músico impõe seu carisma, fazendo com que o disco apresente uma variação muito interessante.
Meus destaques vão para a seqüência "In the Fire" / "Solid as the Sun" e para "12", que tem progressões muito bem arranjadas e um solo do Steve Hackett que é mesmo de arrebentar. |
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