Fantástico, vai rolar direto no meu som
Nos anos 70 o Brasil teve um certo destaque no cenário progressivo, principalmente pela fusão do rock mais elaborado com doses elevadas da nossa boa MPB, fato que atestava originalidade às bandas, agradando o público externo. Os grandes dessa época foram os Mutantes, O Terço e Secos e Molhados. Tivemos tantos outros trabalhos nesse período áureo do rock progressivo mundial, muitos reeditados nos últimos anos por gravadoras nacionais em resgates definitivamente digno de aplausos, mas nenhum deles teve o impacto e a penetração que as três supra citadas tiveram. E como conta-se nos dedos os trabalhos progressivos brasileiros nessa ocasião, acabamos ficando bem atrás da Argentina, apenas para citar outro país da América do Sul como padrão comparativo.
Não raro é observar debates calorosos a respeito do estilo e direcionamento musical desses três gigantes brasileiros dos anos 70, autênticos precursores do rock mais elaborado no país. Muitos questionam se esses grupos são realmente progressivos. Particularmente acredito que sim, mas em contrapartida também os vejo com características muito peculiares e distintas do autêntico rock progressivo europeu, não entrarei no mérito se isso é virtude ou defeito, apenas é um fato que possibilita as observações críticas de que aquele tipo de som não estava intimamente ligado ao progressivo. Os Mutantes, em sua sonoridade tinham uma grande acentuação da Tropicália, chegaram a gravar com Gilberto Gil, ícone do movimento. Mais tarde, com a saída da vocalista Rita Lee, a banda realmente enveredou para trabalhos progressivos, ainda assim, sem abandonar por completo os trejeitos da Tropicália. O Terço possuía outra fonte de inspiração, primeiramente ligada à Jovem Guarda, responsável por trazer o rock ingênuo americano e inglês para o Brasil e posteriormente, com a entrada de Flávio Venturini, passou a ter uma forte acentuação mineira, da MBP do Clube da Esquina e de nomes como Milton Nascimento, Wagner Tiso e Beto Guedes, que também estavam na estrada na mesma ocasião. Secos e Molhados talvez tenha sido o grupo mais inusitado de todos, banda de difícil classificação, com um vocalista soberbo e estupidamente sinestésico. A banda fez tanto sucesso que se apresentou diversas vezes no exterior e até os dias atuais deixa grandes saudades, mesmo assim não está naquele grupo que podemos classificar como rock progressivo de forma literal.
Em meio a esse panorama, no ano de 1974, oriunda da cidade de Campinas, nasce uma banda que infelizmente não chegou a ficar conhecida ou a gravar um trabalho de forma plena, devido a diversos incidentes, denominada simplesmente de Spectro. O grupo tomou corpo após uma "jam-session", como bem sabemos, uma das características eminentes do rock progressivo e realmente aqui a sonoridade é o puro rock progressivo, sem qualquer tipo de afetação. Por esse motivo, posso afirmar com certeza que o Spectro, mesmo sem ter qualquer tipo de reconhecimento ou crédito, produziu uma sonoridade que realmente se aproxima por completo do que bandas inglesas e alemães faziam nos anos 70 no que tange rock progressivo. Portanto, posso apontar com tranquilidade que o Spectro foi um grupo super original para o Brasil, porque o seu trabalho que fora desenvolvido e também esquecido nos anos 70, não possui reflexos na cena brasileira, é único! É quase impossível ouvir o som do grupo e pensar em algo criado no Brasil na década setentista, principalmente se levarmos na mente bandas como Mutantes, O Terço e Secos e Molhados. A sonoridade e arranjos são completamente distintos. O Spectro possui uma ênfase muito grande no trabalho de teclados e percurssão, praticamente não utiliza guitarras e segue uma linha elpiana, algo que realmente não se via e até hoje não se vê em terras tupiniquins. E mais, o álbum é integralmente instrumental e repleto de longos solos de teclados que nos remetem ao saudoso Rick Van Der Linden, que nos deixou ano passado.
O trabalho se inicia com uma composição introspectiva, extremamente lisérgica e espacial, relembrando passagens do "Alpha Centauri" do Tangerine Dream, onde já podemos antever a personalidade da banda, invadindo um campo que ainda não era tão afeito aos brasileiros nos idos de 74. A música chama-se "Momentos do Universo", como podemos notar, um tema largamente utilizado pelo rock progressivo de uma maneira geral. Em seguida, temos a sinfônica "Reverberes ao Spectro", com ênfase em órgão e diversos sintetizadores muito bem conduzidos pelo multimúsico Amyr Cantúsio, já podemos enumerar os elementos do grupo encabeçados pelo próprio Amyr – teclados, Duppermel Jr. - percussão, Adilson Samuel – bateria e Mario Jorge – baixo. "Reverberes ao Spectro" já se distancia do Tangerine e se aproxima do space rock psicodélico, típico dos melhores momentos do Hawkwind.
A partir da terceira música, "Meson K", a banda apresenta todas as suas armas, simplesmente um arraso, quebradeira geral, deixando pra trás o lado psicodélico e enfatizando longos momentos de teclados, combinando perfeitamente com o trabalho de percussão do Adilson, que faz uma introdução de arrassar quarteirão. Vale destacar a linha de baixo extremamente criativa de Mario Jorge. O único fato que pesa contra essa música é a sua baixa duração, passando-nos a sensação de que poderia ter evoluído para uma suíte alcançando outras esferas sonoras, entretanto a música se encerra abruptamente nos seus quatro minutos e meio.
Na sequência temos "Casa Branca" e a quebradeira continua, com destaques para as linhas de baixo instigantes, fazendo contrapontos primorosos à evolução dos teclados de Amyr. Atenção para os acordes iniciais, são belíssimos e provavelmente inspirados por temas eruditos, tendo em vista ser Amyr um pianista com grande acentuação clássica. Em seguida temos a levada que tanto agrada a ala progressiva que admira nomes como ELP, Trace e Tritonus. Essa é a minha preferida do álbum, porém os problemas de mixagem complicam um pouco a qualidade sonora e também acaba por sofrer o mesmo corte abrupto da música anterior, não permitindo um desfecho merecido para essa bela peça musical.
"Spectro" se encerra com o tema "Lince Negro" em que Amyr cria um interessante ostinato no sintetizador com grande agilidade e voltando ao perfil sonoro, espacial e exotérico das duas músicas iniciais, apresentando-nos um anti-clímax para a quebradeira anterior. É possível em "Lince Negro" notar passagens similares à fase inicial do Eloy, principalmente em músicas como “Land Of No Body” do álbum "Inside". Essa música poderia ter sido melhor se a bateria não ficasse um tanto burocrática, ao contrário das músicas anteriores, tem momentos que pedia viradas mais fortes que não se concretizaram.
O som do Spectro pode ter servido de base para alguns trabalhos do Alpha III, mas no geral, possui um estilo distinto, tendo uma sonoridade mais quebrada e super progressiva. Enquanto o Alpha III é mais eletrônico e sinfônico, Spectro é mais visceral, seguindo o trajeto dos power trios setentistas com ênfase em teclados. Sinceramente, não conheço nada parecido em termos de Brasil, é um trabalho ímpar! Por isso a importância de se conhecer essa obra nascida do auge da década gloriosa do rock progressivo, cabendo meu elogio ao grande trabalho de resgate desse brocado na discografia brasileira. Infelizmente a qualidade do som não é das melhores, mas aceitável, ainda mais em se tratando de material que estava até mesmo sujeito à deterioração do tempo.
Deixo agradecimento especial a Renato Glaessel, pela grande colaboração na concepção dessa resenha. |
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