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Electric Light Orchestra : o início ousado, misturando rock, erudito e medieval (2008-03-09)

Marcello Rothery





Hoje, quando surge o nome da Electric Light Orchestra (ou ELO, abreviatura adotada pela própria banda) em rodas de conversas, a maioria das pessoas se lembra de hits com tendências dance como Last Train to London, ou pop-rock como Twilight, Evil Woman, Showdown ou Rock 'n' Roll is King.

No entanto, pouca gente sabe qual foi a proposta inicial da banda : uma mistura bastante ousada de rock com música clássica, com muitos traços de música medieval e toques psicodélicos. Essa receita é mais explícita nos dois primeiros discos da carreira do grupo. E para ela, contribuiu enormemente um músico : Roy Wood.

Na virada para os anos 70, Wood estava à frente de uma bem sucedida banda de rock : The Move. Junto com ele, na banda, atuava seu amigo Jeff Lynne. Paralelamente aos últimos discos do Move, os dois começaram a se dedicar a um novo projeto : uma nova banda, com um som bem mais complexo, aproveitando a onda progressiva que tomava conta do mundo do rock naquela época. Porém, a idéia de ambos era mais original : ao invés de usar teclados como órgão ou mellotron, a idéia era ir fundo na mistura de rock com a música clássica, com toques medievais e folk, e uma boa dose de experimentalismo e psicodelia.

Para isto, começaram a se projetar em vários instrumentos. Jeff Lynne executava guitarras, baixo, piano, e vocais. E Roy Wood, pegava mais pesado ainda : vocais, guitarras, baixo, violoncelo, fagote, flauta doce, clarinete e até oboé, ele acrescentou tudo isso ao som da nova banda.

Assim, praticamente sozinhos, eles criaram e gravaram o repertório que sairia no disco de estréia do novo grupo : Electric Light Orchestra. Acompanhados pelo baterista Bev Bevan, um soprista e um violinista. O disco sairia em 1971.

Um verdadeiro clássico do progressivo dos anos 70, o álbum tinha uma abertura arrasa quarteirão : 10538 Overture, um rock poderoso, com guitarras e violoncelos competindo furiosamente entre si, e sopros fazendo um excelente pano de fundo. A seguir, Look at me Now, onde Wood faz quase tudo sozinho : vocal, violoncelos, clarinete e violão, uma espécie de balada pop tocada com instrumentos clássicos (com direito a um interlúdio puramente erudito). Depois, outro petardo de Lynne : Nellie Takes Her Bow, uma bonita melodia levada no piano, com violoncelos e violino fazendo um acompanhamento genial, com direito a mais um ótimo interlúdio, com a melodia mais acelerada, antes do retorno da melodia inicial. O lado 1 encerrava com 2 composições de Wood bem distintas entre si. A primeira é The Battle of Marston Moor, talvez a mais radical música da carreira do grupo, puramente medieval e tensa, levada apenas em violoncelos, violino e sopros. Praticamente instrumental, com uma narração no início apenas. A outra música era 1st Movement, um rock instrumental mais convencional, levado em dois violões.

O lado 2 abria com um dos destaques do disco : Mr. Radio, numa melodia mais light e bem agradável, levada no piano (muito bem tocado por Lynne). Esta música apresenta o primeiro registro de vozes gravadas ao contrário na banda, algo que se tornaria marca registrada nos anos seguintes. A seguir, Queen of the Hours, mais calcada no clássico, e a instrumental Manhattan Rumble, com mais um show de piano (com violino e violoncelo fazendo outro belo pano de fundo), em mais uma melodia tensa, outro grande momento do álbum. A parte do meio é muito interessante também, tem uma levada mais acelerada, e algumas discretas vocalizações bem pouco convencionais. O disco encerra com uma melancólica balada de Wood : Whisper in the Night, com seu jeito ELO de ser : violões, e uma cama de violoncelos, fagotes e violinos fazendo o pano de fundo.

O disco foi muito bem recebido pela crítica, mas não obteve boas vendas. Paralelamente a isto, a turnê da nova banda não foi bem sucedida. Uma vez que Lynne e Wood tocavam quase tudo no disco, foi preciso recrutar vários músicos de apoio, para que a banda pudesse se apresentar ao vivo. Mas a coisa não estava funcionando muito bem : um bom tempo era perdido no meio dos shows para que Wood trocasse de instrumentos.

Junto a isso, turbulências surgiram entre os dois líderes. Isso tudo acabou culminando na saída de Wood da banda. E com isso, as rédeas caíram todas nas mãos de Lynne. Parecia uma loucura, já que Wood foi o mentor, era o principal líder, e executava a maioria dos instrumentos.

Mas Lynne mostraria, a partir de então, a sua força. Com novos membros (entre os quais um que se tornaria muito importante, o tecladista - e eventual guitarrista - Richard Tandy), seguiu com a banda em frente, e soltou outro petardo em 1973 : ELO II. A partir deste disco, seria responsável por todas as composições da banda, assim como os vocais principais (mais tarde, seria acompanhado pelo baixista Kelly Grouncut, que se tornaria muito importante nos vocais de apoio, além de fazer algumas aparições esporádicas - em alguns trechos de canções - no vocal principal).

Neste segundo disco (ainda sem Kelly, que só entraria na banda um ano depois), Lynne descarta de vez a presença de sopros na banda, e dá mais espaço às guitarras, violino e teclados. Composto por apenas 5 longas músicas, ELO II é o último registro genuinamente progressivo do grupo. Calcado em melodias tensas, caóticas, e até enfurecidas (vide a abertura com In Old Englad Town), o disco foi, segundo Lynne, uma resposta a quem achava que ele não conseguiria levar a banda adiante sozinho. Tudo é grandioso : os arranjos, com vários instrumentos intercalando entre si. As variações (de levadas de guitarras e baixo pesados para delicadas incursões de violino e piano), idem. E as letras, também longas, complexas, e às vezes um pouco confusas, como Lynne confessaria mais tarde. Mas tudo funciona muito bem, e trata-se de um grande disco, um prato cheio para quem gosta de progressivo denso, tenso, com bastante apelo clássico, mas com passagens roqueiras também.

Depois deste disco, a banda, aos poucos, passaria a se dedicar a músicas de concepção mais simples, porém mantendo a complexidade nos arranjos. Atingiriam seu auge nos anos seguintes, com discos excelentes como Face the Music e Out of the Blue. Porém, nada foi mais surpreendente, ousado, e original do que o começo da sua carreira, nestes dois discos comentados aqui. O que mostra que, muitas vezes, vale a pena pegar mais fundo na ousadia, caminhando na beira do abismo. Bons resultados costumam acontecer.


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